Pais que não querem ser pais

Cena 1 : uma criança hipnotizada frente à tela do tablet se distrai enquanto os pais fazem sua refeição em paz. Cena 2: pais preocupados com a integridade dos filhos adolescentes permitem que a festa aconteça no salão do prédio. Nota importante: a festa tem todos os ingredientes que uma festa longe dos cuidados dos pais costuma ter: bebidas, drogas e, por vezes, sexo. O que cenas como essas podem ter em comum?

Antes da resposta (se é que conseguirei dar até o fim deste texto) vale pensar sobre a postura dos pais da criança com o tablet e do adolescente que “bebe em casa”. O modelo atual de educação de filhos propõe uma alternativa ao modelo do século XX, carregado de autoritarismo e carente de diálogo. Pessoas que cresceram sob esta perspectiva consideram que a relação com os pais era de difícil trato.

Principalmente após as revoluções culturais dos anos 60 e 70, especialistas escreveram livros e proferiram palestras sobre o que precisaria ser descartado e o que tinha de ser construído no que diz respeito ao cuidado com os filhos. Estes novos conceitos foram estabelecidos pouco a pouco, mas sua força solidificou uma nova forma de pensar apenas no início deste século, com a popularização da internet e o compartilhamento da informação. Por mais que já existisse um novo “espírito” nos anos 90, muitas crianças dessa década ainda sentiram, mesmo que de maneira cada vez mais fraca, o sopro dos modelos anteriores da relação entre pais e filhos. 

Este sujeito que cresceu sob a influência da construção de novos modelos de educação, mas que, também, sentia o hálito da geração passada, tornou-se dependente de referências para guiar suas concepções de mundo. Em outras palavras, o individuo do século XXI vive o dilema da falta de confiança em sua própria maneira de cuidar dos filhos. Não à toa observa-se a crescente busca pela “opinião técnica”, que poderia sanar suas dúvidas e diminuir as preocupações acerca do que seria certo ou errado na criação de seus herdeiros.

A falta de confiança dos pais do século XXI cria uma série de desdobramentos que retratam fielmente os modelos de nossa época. Tão humano quanto sentir fome ou sede é nossa capacidade de “fugir” daquilo que tememos. Este traço evolutivo, tão importante para que nossos antepassados sobrevivessem aos ataques de eras remotas, hoje parece ser uma característica predominante dos pais na atualidade. A fuga é uma alternativa diante do desconhecido – e assustador – mundo da paternidade.

O pai moderno se sente acanhado em ocupar a posição do progenitor que “censura” o desejo do filho. Recorre ao tablet não por preguiça, como pensam alguns que realizam julgamentos antecipados, mas por se considerar incapaz de ocupar aquela que é uma das funções mais importantes de quem cuida – seja na pré-história ou na modernidade: dizer para seu “filhote” o que fazer. Esta função pode gerar inúmeros contratempos, como a resistência do filho em obedecer, o que, consequentemente, pediria aos pais atitudes mais enérgicas. Este, no meio de uma mudança de paradigma geracional, assustado pelos novos modelos impostos pelos especialistas e assombrados pelo que viveram na infância, se sentem impotentes e recorrem à magia que os eletrônicos exercem nas crianças.

E sobre o medo de “perder” os filhos adolescentes para o mundo? A impotência que os pais sentem diante do furacão de emoções que é um jovem na adolescência os fazem optar pela adesão ao desejo dos filhos. Uma ou duas décadas atrás, adolescentes descobriam seus limites longe do olhar de seus pais. Isto, obviamente, incluía o acesso às drogas, ao sexo e experiências sobre o que é ser quem é. Hoje, com a ideia ilusória de que podem conhecer integralmente seus filhos, pais permitem que os excessos típicos desta idade sejam realizados bem próximo de seus olhos. Embora seja absolutamente compreensível saber que esta ação é composta por boas intenções, tal comportamento impede o jovem de introjetar códigos e regras morais fundamentais para uma boa saúde psíquica. O porre “caseiro” dará ao jovem a ideia de que seus pais sempre o apoiarão, não importa a burrada que faça.

O que a criança com o tablet e o adolescente que bebe em casa, então, têm em comum? Ambos são privados da experiência da censura. Os pais do século XXI se sentem incomodados em ocupar o papel de instância geradora de frustração e, infelizmente, privam seus filhos de uma das mais fundamentais habilidades da vida: a capacidade de tolerar a frustração. Talvez seja o momento dos pais do século XXI aceitarem que autoridade não é sinônimo de tirania e que os sentimentos aversivos que seus filhos poderão sentir em relação a eles é parte fundamental da construção de uma saudável vida emocional. A opinião técnica é de fundamental importância, mas a educação de filhos é receita construída na relação e a base para isso é uma receita que funciona na pré-história e na contemporaneidade: pais não devem sentir vergonha por serem pais.

 

 

Tiago Pontes é psicólogo e atende em consultório particular na região da Vila Clementino, São Paulo, e em São Caetano do Sul. Gerencia a página suco de cerebelo que aborda temas como psicologia, psicanálise, filosofia, literatura, artes e comportamento.

 

Tiago Pontes
Psicólogo
CRP 06/123352

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